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Maria Fernanda Seixas
Publicação: 19/08/2010 17:51 Atualização: 20/08/2010 20:39
O perfil de sua carreira no site dos Médicos sem Fronteira conta um pouco sobre sua infância em Minas Gerais, quando sua família ajudava muito as pessoas necessitadas. Quando criança, como enxergava aquela realidade?
Para mim, tudo era muito natural. Eu só conhecia essa realidade. O normal era ser solidário, era ter uma casa de portas abertas para todas as pessoas. Eu sou o mais jovem dos irmãos (meninos) e conforme um irmão ia crescendo, passava sua roupa para o menor que ele, e eu era o último desta escala. Quando ganhava minha roupinha, usava até que o umbigo ou as canelas ficassem de fora. Muitas vezes, essas roupas não chegavam a mim, pois meus pais consideravam que outra pessoa necessitava mais do que eu. Esse tipo de coisa nunca me pareceu difícil. Para mim, a vida era bastante simples e compartilhar era o habitual. A gente sempre vê os pais como um modelo e o que os pais fazem é sempre o mais correto. Só percebi que aquilo não era um padrão para todas as famílias quando fui crescendo e entendendo a complexidade das coisas.
Lembra-se qual foi a primeira viagem de sua vida? Sempre gostou de viajar, conhecer novas culturas?
Meu pai trabalhava arrumando bombas de água nas fazendas, muitas vezes ele me levava com ele e aquilo me encantava. Para mim, tudo era muito longe e grande. Conhecer lugares novos, pessoas, animais, eu ficava encantado. Foi muito difícil ir para o Jardim de infância porque já não podia viajar com meu pai. Eu chorava escondido porque achava que estava aprisionado naquela escola. Quando cresci um pouco, ia sempre a Lagoa da Prata para passar alguns dias com minha irmã. Eram 60km e me parecia longe, uma aventura. Para mim, era um lugar onde as pessoas falavam diferente e tinham costumes diferentes. E lá tem uma praia de água doce, com areia e coqueiro… bastante diferente das margens de rios que costumava ver e nadar nos arredores de Bom Despacho. Aquele mundo pequeno me parecia muito grande. A primeira viagem para valer foi quando fui a João Pinheiro, uma cidade que fica a 360km de Bom Despacho (cidade onde nasci). Estrada de terra, viajando de caminhonete velha, me pareceu muito longe, achei que estava dando a volta ao mundo, e as pessoas tinham um sotaque estranho e usavam termos que eu achava muito engraçado. Fui crescendo e o mundo foi crescendo junto comigo. Na escola, descobri que existiam outros estados, outros países, outros continentes. Aprendi a ler e, lendo, viajava para muitos lugares que queria conhecer pessoalmente. Comecei a sonhar em viajar, conhecer o mundo. Sairia pelo sul do Brasil, passando pelo Uruguai e a hermana Argentina e subiria até o México. Tive uma grande inspiração lendo a história de dois homens viajando desde a Argentina e um deles chegou até o México e, depois, Cuba. Essa história batia com meus sonhos e descobri que ele era possível. Há poucos anos, a história desses dois homens deu origem ao filme “Diários de Motocicleta”. Depois de conhecer a América Latina, iria para outros continentes. Nunca consegui ter dinheiro para essa viagem. Mas confesso que continua sendo um sonho. As viagens me fascinam, e não tenho escolha do meio de transporte, de carro, trem, bicicleta, moto, a pé, etc.... só não gosto muito de avião, pois não se pode apreciar muito bem o percurso.
Como foi a experiência de cursar medicina em Cuba? Por que escolheu o país? Existiu algum choque cultural? O que aprendeu por lá, além da medicina?
Estudar no Brasil seria muito difícil para mim. Minha mãe me havia dito que não conseguiria me manter em Belo Horizonte para me preparar para o vestibular, mas meu irmão Benício me ajudou pagando a moradia, comida e o cursinho e ressaltou: “vai ter que estudar muito, e se quiser ir a Bom Despacho visitar a mãe vai ter que ir a pé”. Topei, mas fiquei preocupado com o futuro: Como faria quando passasse no vestibular? Os gastos aumentariam... Cuba era um país polêmico e isso me atraía. E era um país reconhecido por ter medicina e escolas de muita qualidade. Sabia que Cuba dava bolsas de estudos e, em 1986, quando o Brasil reatou relações com Cuba, eu estava trabalhando e terminando o segundo grau em Brasília e comecei a tentar uma bolsa. Em 1988, voltei para BH para fazer o cursinho, como expliquei acima, e neste ano consegui a bolsa de estudo para Cuba, e foi quando parti rumo ao desconhecido, para viver uma das experiências mais incríveis da minha vida. Nos primeiros momentos, tive um grande choque cultural. É normal que isso aconteça. A gente se vê inserido em uma cultura totalmente diferente e leva algum tempo para aprender as verdades alheias, ou seja, para quebrar nossas paredes culturais e absorver a nova cultura na qual nos inserimos. Além de ter que absorver a cultura cubana, com todas suas peculiaridades, vivia em residência estudantil com pessoas de vários lugares do mundo, latinos americanos, árabes, cingaleses, norte-americanos, etc. Como vê, foi um choque cultural vindo de todos os lados. Acho que neste momento aprofundei minha batalha de autoaprimoramento. Além de ter que aprender a conviver com a diversidade cultural, entrava para um curso de medicina que me obrigava a estudar mais do que tinha costume no Brasil. Mas, com o tempo, a gente absorve a cultura se adapta e a vida fica mais amena. Em Cuba, aprendi a ser mais solidário. Os cubanos prestam serviços humanitários em vários países pobres do mundo. As pessoas que vão trabalhar em outros países (professores, médicos, etc.) são chamados de internacionalistas, e convivendo neste ambiente comecei a pensar em ser um médico internacionalista. Aprendi também a ter uma visão mais humana do mundo, mais igualitária.
A partir de Cuba, você embarcou em diversas experiências pelo mundo. Foram viagens transformadoras?
Acho que sim, cada experiência é capaz de nos transformar. Às vezes, a mudança é tão pequena que não percebemos, mas se a experiência é contínua e principalmente variada ela será mais profunda e mais evidente. Claro, vivo um processo de transformação contínuo. Quando a gente abre a mente e o coração, a gente perde os limites da aprendizagem. Quando a gente absorve as verdades alheias, absorve diferentes culturas, a gente dinamiza a forma de pensar e de interpretar as coisas e as pessoas. E claro, a nós mesmos. Com esse processo, coisas pequenas passam a ter um valor imenso e coisas grandes podem passar a ser insignificantes. A mesma coisa acontece com nossos problemas. Muitas vezes, deixamos de nos preocupar com coisas que antes pareciam importantes e passamos a ter mais atenção com coisas que antes pareciam insignificantes. Pessoas simples podem passar a ser grandes e grandes pessoas podem passar a ser medíocres. Aprendi algo muito importante, aprendi que não temos que salvar as vidas das pessoas, não temos que resolver todos os problemas que encontramos (que são infinitos). A única coisa que podemos fazer é oferecer o nosso melhor. É nos dedicarmos com profissionalismo e fazer o melhor possível. O resto será consequência. Entender isso nos ajuda a lidar com as possíveis frustrações. Assim como a entender os limites existentes. Os nossos próprios limites, os limites do contexto e os limites do grupo (da Organização).
Qual viagem mais mexeu com você como pessoa? O que aprendeu nela?
Não saberia dizer, viajei bastante como mochileiro e também trabalhando com MSF. Cada viagem mexe comigo de alguma forma, locais que visito, reviver a história da humanidade ao entrar em um museu ou em lugares históricos, admirar-me com a beleza de algumas paisagens ou com algumas pessoas e seus costumes. Entristecer-me com situações catastróficas ou sub-humanas que algumas pessoas vivem. Passar apertos em viagens de aventura, me estressar com dificuldades e com segurança trabalhando em locais de alto risco (guerra, catástrofes, etc), curtir bons momentos com pessoas que se conhece durante as viagens, desfrutar momentos e lugares novos, saudade da família e dos amigos, etc. Tudo faz cada viagem ser importante e um verdadeiro sacolejo no corpo e na alma. Tudo me ensina muito. Como eu disse, vou sofrendo modificações constantes nesse processo de aprendizagem contínuo.
E como médico?
Como médico, aprendi a ser mais humano, mais dedicado e mais doce com os pacientes, a respeitar mais a dor alheia, as inseguranças e fragilidade que as doenças trazem para o doente e familiares. Acho que passei a entender melhor as doenças porque passei a entender melhor as pessoas. Descobri também que tenho muito que aprender, a cada dia tenho que aprender uma lição nova, de vida e profissional, senão fico inválido. Descobri que a gente trabalha todos os dias, vestindo o manto branco do conhecimento, mas na verdade estamos vestindo uma bolha branca que não nos deixa ver além de suas paredes. Por isso, todos os dias pela manhã arrebento essa bolha branca para poder recomeçar olhando além deste ‘manto’ quase sagrado. Descobri que sou um eterno aprendiz, que necessito polir-me a cada dia, retirar as arestas, dia após dia, deixar de ser pedra bruta. E este trabalho não finda.
Nas viagens do MSF, já passou situações extremas em acomodações? Esse é um detalhe que faz diferença para você?
Posso dizer que já fui de um extremo a outro. Já fiquei em acomodações muito boas, casa bem confortável, com TV, internet e comida de qualidade. E já estive em barraca, usando latrina, buscando água no balde para tomar banho de caneca, sem almoço e jantando sabe-se lá como chamar aquilo. Acho que faz muita diferença. Os dois extremos nos fazem pensar. No caso de estar em situações com melhores condições, no começo a gente se sente um pouco culpado por estar fazendo trabalho humanitário e hospedado em boas condições. Mas com o tempo a gente entende a importância que há em dar-se boas condições para os trabalhadores humanitários, pois o dia a dia já é bastante estressante, e chegar em casa e ter um mínimo de conforto é muito importante e ajuda para recomeçar no dia seguinte com mais energia. O caso do extremo de privação também faz diferença já que nos ajuda a conhecer na prática o que é viver com restrições, o que é não ter de fato. Nos ajuda a mudar nossos valores, nossas ambições, a dar mais valor a coisas simples e a perceber que coisas, que antes eram importante, passam a ter um lugar secundário, ou até mesmo perdem totalmente o valor. Não desejo que as pessoas tenham que trabalhar com privações, mas acredito que esta vivência ajuda muito a ver o mundo, as pessoas e a gente mesmo de modo diferente.
Qual foi o momento mais difícil de sua experiência como pediatra pelo MSF?
Não tenho certeza de que haja um momento mais difícil. Acho que trabalho humanitário é difícil todos os dias. Costumo dizer que deito cansado, estressado e muitas vezes frustrado, mas tenho que amanhecer renovado, tenho que renascer todas as manhãs. Se não for assim não se consegue fazer este tipo de trabalho por muito tempo. Mas talvez o Tempo que passei no Sudão tenha sido o mais intenso. No sul vivendo em barracas e com muitas restrições, começávamos o dia às cinco da manhã e voltávamos para o acampamento já escurecendo, sem almoço, cansado, queimado do sol porque trabalhávamos ao ar livre, pois não há estruturas hospitalares, e de tardezinha, ao chegar ao acampamento encontrava uma fila de pacientes esperando por atendimento médico. Naquele lugar desértico pessoas doentes apareciam sabe-se lá de onde, com as mais variadas doenças. O caso de uma menina com malária cerebral que tive que internar em minha barraca (na verdade já estava na minha barraca, no meu colchão quando cheguei) e passar a noite tratando a febre que nunca baixava e convulsões que insistiam em voltar a cada momento, talvez tenha sido um dos casos mais marcantes. Outro caso de uma mulher com uma hemorragia ginecológica que tive que fazer um verdadeiro rali para chegar à cidade mais próxima, que ficava a apenas 40km, mas demoramos o dia inteiro para levá-la e voltar, chegando ao acampamento à noite, depois de incríveis momentos desatolando carro, retirando carro de grandes buracos, sacolejos e solavancos..... Eu com o barro até os joelhos, conversando com a paciente para saber como estava, enquanto cavava o barro com uma pá para que o motorista tentasse sair do atoleiro. Outros momentos subindo sobre o jeep para tentar encontrar o rumo do “caminho”, já que não existem estradas naquela região. No Norte do Sudão houveram muitos outros casos importantes. Tive que fazer uma cirurgia de reconstrução da mão de um adolescente que moeu a mão em um máquina trituradora, atender pessoas vítimas de tiro, pois estávamos em uma região de guerra, crianças com queimadura extensas. E muitos outros atendimentos desse tipo que vão enchendo nossos dias de trabalho intenso, estresse e cansaço, mas com a recompensa de terminar o dia sabendo que todo o sacrifício valeu a pena, que nossa presença fez e faz a diferença. Acho que faço uma análise contínua, não tenho uma conclusão de tudo isso. Não acho que terminou, esses pacientes continuam aparecendo a cada missão muitos outros continuarão aparecendo e eu continuarei absorvendo e tentando fazer o meu melhor na tentativa de continuar crescendo como pessoa, como médico e como trabalhador humanitário.
Acredita que uma única viagem pode mudar a a vida de uma pessoa?
Acho que sim, dependendo de que tipo de viagem e de que tipo de experiência se tem. Mas é claro que quanto mais se viaja mais oportunidade de conhecer novas diversidades e de se conhecer com diferente perspectiva vão aparecendo e a mudança será maior e mais profunda.
Suas viagens são profissionais. Mas elas não contribuem apenas com o seu currículo. Ganhou autoconhecimento? Espiritualizou-se?
Como disse, gosto muito de viajar. Tenho viajado muito como mochileiro fora do meu trabalho. Costumo viajar depois que termino minhas missões, entre uma missão e outra. Ou mesmo como fiz quando estava trabalhando no Camboja. Tivemos uma semana de feriado prolongado, então peguei a bicicleta do Coordenador de Campo e viajei para o sul do Vietnã. Estive pedalando por uma semana, conhecendo muitos lugares bonitos, conhecendo pessoas bonitas, paisagens, diferentes contextos. Sempre que tenho oportunidade, gosto de viajar, seja para conhecer um museu em Paris ou para conhecer a igrejinha que ninguém conhece no interior da Bolívia. Sempre ganho muito conhecimento, viajando a trabalho ou não. Conheço melhor o mundo e conheço melhor a mim mesmo, meu potencial e meus limites. Hoje em dia, me decepciono menos com meus limites e exploro mais meu potencial. Acho que o grande salto espiritual que tive foi vivendo no Camboja, onde estive trabalhando por seis meses. Foi muito interessante conhecer a cultura budista vivendo num país budista. Não me tornei um budista, absorvi muito da passividade daquelas pessoas, aprendi a sorrir em momentos que antigamente me ofenderia.
E quando está de férias, que tipo de viagem faz?
Acho que não tenho uma regra, visito amigos em seus países, outras vezes vou conhecer lugares famosos, outras viajo meio sem planos ou então por lugares pouco conhecidos.
Ainda se sensibiliza com cenas difíceis ou aprendeu a lidar com frieza com certas situações?
Acho que aprendi, ou estou aprendendo a cada dia, a lidar com as situações difíceis, mas a sensibilidade tem aumentado. Me sinto muito mais sensível às situações que encontro. Pode-se trabalhar com muita dedicação, com muito profissionalismo, evitando que as dificuldades encontradas nos destruam emocionalmente. Há que se trabalhar sem perder a sensibilidade e ao mesmo tempo sem ser frio. Acho que o trabalhador humanitário tem que ser uma pessoa sensível, terna, e, ao mesmo tempo, muito profissional, muito centrado no que faz e quais são seus objetivos, para não perder o foco. Parece contraditório, mas não é. É uma questão de não deixar que a sensibilidade afete a qualidade e profissionalismo de seu trabalho. A frieza é o contrário disto. A pessoa fria pode ter muito conhecimento médico, mas não conseguirá fazer um trabalho médico de qualidade, já que a parte humana fica esquecida.
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