Espero que não se pressionem as mulheres para que façam rastreamento de câncer de mama. A decisão deve ser delas e uma explicação confiável dos fatos deve ser oferecida ao público e às pacientes individualmente. Elas não gostarão do que vão ouvir. — M. Maureen Roberts, diretora clínica do Edinburgh Breast Cancer Screening Project.
Um novo estudo — mais um — demonstrou (outra vez!) que mulheres com menos de 50 anos não devem passar por rastreamento mamográfico (clique para ler o artigo original). Desde 1992 até o presente, mais de uma dúzia de estudos, conduzidos em diversos paises chegaram a esta mesma conclusão. Todos em países de primeiro mundo: Suécia, Alemanha, Canadá, Inglaterra. O último, publicado nos Estados Unidos, chega à mesma conclusão dos demais:
a) as mulheres só devem se submeter a mamografias de rastreamento entre os 50 e os 74 anos;
b) as mamografias de rastreamento devem ser feitas a cada dois anos;
b) autoexame da mama não tem eficácia;
c) não há motivo para usar ressonância magnética ou mamografia digital em substituição à mamografia tradicional;
Apesar disto, o rastreamento continua sendo feito em mulheres jovens. O autoexame das mamas continua sendo promovidos. Por quê?
Em Bom Despacho
A Secretaria de Saúde de Bom Despacho, na contramão da ciência, tem ampliado o programa de rastreamento de câncer de mama para mulheres mais jovens. Na audiência pública da saúde eu alertei as autoridades presentes para a necessidade de reavaliar essa ampliação sob as luzes da ciência e não da política.
Isto porque o rastreamento mamográfico em mulheres abaixo de 50 anos é caro, inútil e pode ser perigoso.
• Caro, porque consome dinheiro que o sistema de saúde poderia usar com mais vantagem em outras áreas;
• Inútil, porque faz as mulheres perderem tempo mas não melhoram nem sua qualidade nem sua expectativa de vida;
• Perigoso, porque a) expõe as mulheres a doses desnecessárias de raio-x; b) aumenta sua ansiedade; c) aumenta os gastos com exames complementares; e d) faz crescer o número de mastectomias não desnecessárias.
Além de tudo, desobedece recomendações do INCA (Instituto Nacional do Câncer) e do Ministério da Saúde. Desde 2003 o INCA somente recomenda rastreamento mamográfico para mulheres acima de 50 anos.
Por que as recomendações científicas são desobedecidas?
Ao desobedecer as recomendações científicas, Bom Despacho não destoa do que se faz em muitos outros lugares. Mesmo em paises de primeiro mundo. Há pelo menos três motivos nítidos para isto: a ignorância científica, a política barata e o interesse econômico.
Ignorância científica
Poucas são as pessoas capazes de analisar e entender estudos científicos. Isto por vários motivos. Um deles é que as Universidades transformaram a Metodologia Científica em mero estudo da formatação de documentos acadêmicos.
Metodologia científica deveria ser o estudo dos métodos científicos, incluindo aí, no mínimo, os métodos dedutivo e indutivo e a estatística. Invés disto os estudantes aprendem a formatar documentos.
Deu no que deu: profissionais de carreira técnica incapazes de entender um relatório técnico.
Política barata
Os políticos e os profissionais desonestos sempre souberam tirar proveito da esperança e do medo da população. A mamografia de rastreamento oferece oportunidade para as duas coisas: de uma só vez atiça o medo do câncer de mama e oferece às mulheres a esperança de dar-lhes vida mais longa e saudável caso se submetam aos exames.
Essa política barata e desumana explora o medo e promove a falsa segurança. Por isto mesmo é difícil de ser combatida. As pessoas preferem ouvir palavras de conforto, de esperança do que palavras de realidade.
Entre alguém que diz: "não faça rastreamento mamográfico, pois não lhe será útil" e alguém que diz "faça o rastreamento mamográfico, pois ele previne o câncer", a pessoa acreditará na segunda e ainda ficará com raiva da primeira.
Fazendo ou não o rastreamento, essa pessoa poderá desenvolver câncer. Mas, se não tiver feito, logo aparecerá alguém para dizer "viu, não quis fazer a mamografia... se danou".
Esse tipo de comentário é uma bobagem cruel. Entretanto, é extremamente difícil de combatê-lo. Quem o faz é obrigado a dizer o contrário do que as pessoas gostam de ouvir. Fica parecendo que está indo contra a frase batida de que "é melhor prevenir do que remediar".
Essa política barata também facilita a vida das autoridades da saúde. Permite-lhes comprar um mamógrafo e fazer chapas. Isto lhes basta para fazerem propaganda de que estão investindo em saúde. O resultado prático - a melhora da qualidade de vida da população - não é discutido nem interessa.
Aliás, em Bom Despacho devemos discutir menos os números dos GASTOS e mais os números dos RESULTADOS.
Interesse econômico
O interesse econômico é evidente. Mamógrafos são máquinas caras. Os filmes usados, também. Sua comercialização é lucrativa. Por isto os fabricantes participam da promoção do medo e da esperança. O medo é a doença e a esperança, a cura. Os dois chegam juntos às prefeituras e juntos são levados à população.
As prefeituras raramente analisam os benefícios dos seus investimentos. Por exemplo, há prefeituras que têm mamógrafos e tomógrafos mas não têm água tratada e rede de esgoto. Ora, rede de esgoto e água tratada previnem doenças e salvam vidas mais do que qualquer mamógrafo e tomógrafo.
Acontece que os prefeitos preferem investir em tomógrafos do que em água e esgoto. Compra de tomógrafo dá mais visibilidade e permite maior lucro para o prefeito. Tanto para os honestos quanto para os desonestos. Os primeiros ganham na propaganda. Os segundos, na propaganda e no dinheiro também.
Preguiça de pensar
Outros fatores que prejudicam a adoção dos conhecimentos científicos são a inércia e a preguiça de pensar.
Ao entrevistar um representante do INCA (Instituto Nacional do Câncer) a respeito desse assunto, a apresentadora Fátima Bernardes, da Rede Globo, perguntou mais ou menos o seguinte: "mas doutor, sabendo que há tanta falta de mamógrafos nos estados mais pobres, essa recomendação não vai piorar a situação das mulheres?".
Isto é preguiça de pensar. É o oposto. Se excluirmos do rastreamento as mulheres abaixo de 50 que dele não se beneficiam, precisaremos de menos máquinas e ainda será possível atender melhor àquelas que podem fazer uso benéfico delas: as mulheres entre 50 e 74 anos.
Como se não bastasse, ela também perguntou se, pela falta falta de mamógrafo, não seria inconveniente parar de recomendar às mulheres que façam autoexame das mamas.
Isto também é preguiça de pensar. A recomendação não tem nada a ver com mamógrafos. Tem a ver com a inutilidade do exame. Com ou sem mamógrafo, ele é inútil. Não só inútil. Ele causa estresse desnecessário nas mulheres que PENSAM que encontraram "alguma coisa".
Inércia
Há anos o Brasil vem promovendo o autoexame da mama. Campanhas maciças. Pela força da inércia elas tendem a permanecer. Só sumirão muito vagarosamente. Mas há uma força maior que reforça a inércia: são os egos de todas as pessoas que participaram das campanhas. A Rede Globo, por exemplo, virá a público desdizer o que diz há anos? Suas atrizes virão?
Não (pelo menos em sua maioria).
E os médicos e enfermeiras que durante anos disseram para suas pacientes fazerem o autoexame? Eles dirão a elas que estavam errados?
Dificilmente.
Também por isto essas crenças e práticas — embora inúteis, caras e até perigosas — terão uma longa sobrevida.
Caixa de marimbondo
Mexi numa caixa de marimbondo. Médicos, enfermeiras, autoridades administrativas, todos acharão uma forma de me atacar pelo que estou reproduzindo aqui.
As autoridades administrativas, porque querem justificar os gastos desnecessários e porque querem continuar explorando o binômio medo/esperança dos eleitores.
Os médicos e enfermeiras, porque lhes é muito difícil (como é para qualquer ser humano) mudar os hábitos.
Para qualquer profissional é difícil admitir que mantivemos uma prática profissional inútil, errada ou danosa. Então, a tendência natural de quem vinha promovendo a mamografia para mulheres mais jovens será encontrar justificativas.
É assim mesmo que acontece. Devemos ser compreensivos com essas pessoas.
De outro lado, não tenho medo de ferroadas de marimbondos. Estou acostumado.
Faço, porém, uma proposta civilizatória: vamos tratar de fatos, não de pessoas. Quem achar que tem EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS (enfatizo ambas as palavras: evidências e científicas) de que as declarações aqui expendidas estão erradas, coloque-as na mesa de discussão.
Nestas coisas - como em muitas outras - devemos ouvir o conselho de Charles Dickens, em Hard Times:
“'You are to be in all things regulated and governed’ said the gentleman, ‘by fact. We hope to have, before long, a board of fact, composed of commissioners of fact, who will force the people to be a people of fact, and of nothing but fact. You must discard the word Fancy altogether.'”
Que traduzo por minha conta e risco:
"'Em todas as coisas' disse o cavalheiro 'devemos ser regidos e governados pelos fatos'. Esperamos ter, em breve, um conselho de fatos, composto por conselheiros de fatos, os quais forçarão o povo a ser o povo dos fatos e nada mais do que fatos. Devemos descartar totalmente a palavra Fantasia".
Que venham as ferroadas, mas dos fatos, por favor! Nada de ferroada com veneno pessoal.
Um comentário:
Não vou te ferroar de jeito nenhum. Muito pelo contrário, agradeço imensamente os esclarecimento e a coragem. Minha homeopata sempre me liberou desse exame, mas encontrei extrema dificuldade em conseguir fazer apenas a ultrassonografia. Finalmente encontrei um ginecologista que me libera também rsrsr. O problema é que quando chego nos radiologistas, eles não acatam a decisão do meu médico e fazem um guerra. Parabéns!
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