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segunda-feira, 29 de março de 2010

Jurisdição agrária e o plano de direitos humanos

Jurisdição agrária e o plano de direitos humanos(*)

Fernando Humberto dos Santos - Juiz de direito em Belo Horizonte,
professor da PUC Minas e mestre em administração pública pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

A pretexto de um programa de direitos humanos, o governo Lula decretou um plano legislativo que aborda temas os mais diversos, como a revisão da anistia, taxação de grandes fortunas, censura de meios de comunicação, novas regras de planos de saúde, legalização do aborto e casamento homossexual, controle de pesquisas, bem como novas leis civis e processuais para afastar dos juízes o poder de coibir invasão de terras.

A antiga luta por terras para trabalhar se transformou em pura ação ideológica. A melhor qualidade genética dos rebanhos, as perspectivas do mercado de energia verde, o avanço dos negócios internacionais, o aumento da produtividade agrícola e a precocidade das florestas plantadas são, entre outros sucessos da atividade rural, dados que fizeram com que a pregação pela reforma agrária mudasse de estratégia. As invasões assumem exclusivamente o papel de “ação social”. Não se fala mais em aumento da produção.

Nesse contexto, o MST e outros buscam apoio de intelectuais saudosos da velha esquerda romântica e de desavisados acadêmicos que pretendem influenciar legisladores. Fazem o jogo político dos socialistas utópicos. Desenvolveram esses sonhadores um projeto de lei (incluído no Plano Direitos Humanos) que pretende alterar a lei civil possessória, estipulando mudanças substanciais. É o PL 490/95, do deputado Domingos Dutra (PT), ainda em tramitação:

“Art. 1° – O artigo 927 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, passa a vigorar acrescido de parágrafo único, com a seguinte redação:

“Parágrafo único. Nas hipóteses das ações que envolvam conflitos coletivos pela posse da terra rural, assim como conflitos pela posse do solo urbano, de conformidade com o artigo 82, inciso III, deste código, deverá o autor provar o cumprimento da função social do imóvel.”

O acréscimo desse parágrafo fará com que seja ampliada a incumbência (requisito para pedir) de quem tem suas terras invadidas. Sem comprovar o exercício da função social, o que exige perícia técnica, não se permitirá ao juiz a concessão da liminar.

Pretende ainda: Art. 2º – O parágrafo único do artigo 928 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, é substituído pelos seguintes parágrafos:

§ 1º Contra as pessoas jurídicas de direito publico não será deferida a manutenção ou reintegração liminar sem pr[evia audiência dos respectivos representantes judiciais.

§ 2º Em se tratando de ação que envolva conflito coletivo pela posse da terra rural, ou nos casos que envolva conflito pela posse do solo urbano, de conformidade com o artigo 82, inciso III, deste código, a concessão de liminar, nas ações possessórias, será precedida da manifestação do Ministério Publico (MP) e, no caso de conflito coletivo pela posse da terra rural, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)e do órgão estadual de terras ou repartições administrativas estaduais correlatas.

§ 3º Na hipótese de conflito coletivo pela posse da terra rural, previamente à concessão de liminar será realizada inspeção judicial, conforme previsto no artigo 440 e seguintes deste Código, na qual o juiz far-se-á acompanhar de técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, incumbidos de coletar os dados necessários à avaliação pelo Instituto do cumprimento da função social da propriedade.

A liminar sujeitar-se-á a consulta ao MP. Embora não vinculante, a obrigação desse parecer é protelatória, pois o MP tem prerrogativa de intimação pessoal e prazo para manifestação em cinco dias. Percebe-se a pretensão de retardamento. Tanto o Incra quanto outros órgãos deverão se manifestar em prazo duplo para cada um deles. O terceiro parágrafo condicionará ainda o processo, a visita ao local da invasão e inspeção judicial, assistida por técnicos (do Incra) que dirão se a propriedade atende os índices de exploração estipulados. Mais uma vez, o juiz depende de datas e de intimação de terceiros. Isso tudo pode levar meses.

Em suma, as mudanças projetadas limitam a liberdade de atuação do juiz, retardando o curso do processo. Tal fato vai de encontro ao princípio da celeridade processual. Ora, desde a primeira Constituição Republicana (CR, em 1891), ao Poder Judiciário compete o monopólio de jurisdição, substituída a vetusta autotutela e afastada a discricionariedade do poder político. É inafastável a jurisdição, assim outorgada nos termos do artigo 5º, XXXV, da C.R. : – “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

No caso desse projeto há violenta agressão a princípios universais de direito. Todos têm o direito de acesso à Justiça para postular a tutela preventiva ou reparatória de lesão jurídica. Ter direito de ação significa aptidão para buscar em juízo a reparação de seus direitos. Todo expediente destinado a impedir ou dificultar sobremodo a ação ou a defesa no processo civil constitui ofensa ao princípio constitucional do direito de ação.

Não há permissivo jurídico para a criação de quaisquer instâncias administrativas a serem vencidas antes que o cidadão recorra ao Judiciário. Abandonar esses sedimentados princípios é o mesmo que deixar ao sabor das contingências político-administrativas, sabidamente voláteis, a segurança jurídica necessária ao enfrentamento do “caos social”.


(*) Artigo publicado no jornal Estado de Minas - Segunda-feira, 29 de março de 2010

3 comentários:

Revistacidadesol disse...

Oi, Fernando.

Achei um texto um tanto hermético esse. Só pontuo o seguinte: o plano de direitos humanos está gerando polêmica aí no governo Lula, mas muito do que ele traz foi aceito e elaborado no governo FHC.

O termo "ideológico" significando "de esquerda" é um uso pelo menos controverso. Prefiro o conceito dos sociólogos norte-americanos como Wright Mills: todo mundo tem suas ideias, sua ideologia.

Não sou conhecedor do assunto e ele pode trazer erros jurídicos tal como o Fernando Humberto está apontando, mas do jeito que ele escreveu, reforma agrária fica parecendo projeto de socialistas utópicos. Imagina. Reforma agrária é assunto debatido pelos iluministas e liberais clássicos como John Locke, que postula que a terra é de posse coletiva, o proprietário tem apenas o direito de usufruir dela como se fosse uma concessão. Daí, portanto, a terra improdutiva ou usada para plantar maconha poder ser confiscada.

Abs do Lúcio Jr.

Fernando Cabral desmente... disse...

Caro Lúcio

Penso que seus comentários seriam mais bem comentados pelo próprio Fernando Humberto. Não apenas porque é o autor do texto, mas também porque é um dedicado estudioso do assunto, tanto como militante por direitos políticos e sociais quanto como ofissional do direito que oficiou na área.

Em todo caso, comento seu comentário, em meu próprio nome (é claro!).

Não acho que o texto seja hermético, como você o qualifica. Mas concordo que não é um texto típico para o leitor com pouca informação. Digamos, para um leitor típico de blog.

Não acho que (para os fins do texto) seja importante esclarecer o que teria vindo como idéia do governo FHC e o que foi agregado (ou modificado) pelo governo Lula. Até porque, no texto, o primeiro parágrafo é quase um nariz de cera.

Também não acho que o termo é usado no sentido "de esquerda", ainda que no caso se refira a ações de autoentitulados esquerdistas. Entendi-o como ação não fundamentada na razão ou na necessidade. Um significado diferente (mas não conflitante) com aquele dado por Wright Mills.

Juridicamente, trata-se de uma aberração. Nesse sentido concordo inteiramente como Fernando Humberto. É uma proposta absurdamente inconstitucional. É também antidemocrática, pois impede a algumas pessoas (proprietários ou posseiros) o acesso à justiça. Um sinal clássico de hipertrofia do executivo. Característico das ditaduras e tiranias (sob qualquer denominação e em qualquer época).

Também quanto à reforma agrária, concordo com o autor e vou até mais longe. Falar em reforma agrária como fala o governo Lula e o MST é uma excrescência. Um diacronismo ideológico. A reforma agrária propalada pelo MST e pelo governo Lula (só da boca para a fora, em ambos os caso) teria feito sentido no Brasil até a década de 20 ou 30 do século passado. Nos Estados Unidos foi útil no século IX. Entre os romanos, foi útil há 2 mil anos.

De fato, acredito que a reforma agrária do MST e do governo Lula é muito pior do que um projeto de socialistas utópicos. Esses tinham a seu favor a boa-fé e também a realidade dos latifúndios improdutivos das colônias européias de paises como a Rússia de então.

O confisco das terras usadas para produção de maconha não tem nenhuma relação com reforma agrária. A fundamentação é bem outra (aliás - embora exista a possibilidade legal - no Brasil não existe caso de confisco de terras usadas para produção de psicotrópicos).

Para encerrar, ainda que o Fernando Humberto tivesse usado o termo "ideológico" para se referir à esquerda (repito: não acho que foi) nesse caso da reforma agrária, eu diria que ele está certo: as propostas são irracionais e têm motivação ideológica. Isto é, derivam de crenças, não do conhecimento da realidade e da prática. No momento atual do Planeta, a criação generalizada de minifúndios é irracional e traria resultados desastrosos para a sociedade. Mas esse assunto é por demais complexo para ser tratado num comentário que já estendeu para muito além do razoável!

Revistacidadesol disse...

Oi, Fernando. Obrigado pelos esclarecimentos.

Não sei se o Fernando (Humberto) lê seu blog, nunca vi comentários dele aqui. Quem sabe o papo se estendendo ele não se manifesta.

Para mim, é mais fácil comentar o nariz de cera do que o vocabulário um tanto quanto técnico que vem a seguir.

Pareceu-me que Fernando Humberto quer criar a antinomia MST/Governo Lula X agronegócio e transgênicos naquele primeiro parágrafo. E essa oposição não existe, nem o governo Lula está completamente aliado ao MST. Alguns setores do MST querem empurrar o governo Lula mais para a esquerda, mas acho que a estratégia não deu certo, como não deu para Marina Silva combater os transgênicos.

Realmente, para Marx o discurso do socialista seria científico, enquanto o do capitalista seria ideológico, no sentido de esconder inúmeras coisas e gerar falsa consciência. Já o sentido corrente na mídia é exatamente o inverso.

E pelo que acompanho na mídia, o governo cede a pressões de movimentos sociais tal como o MST, não tem uma política ativa e clara de reforma agrária. E é bem generoso com os transgênicos e o agronegócio.

Abs do Lúcio Jr.

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